"A Narrativa começou antes de todos nós nascermos e acredito que terminará gerações depois de deixarmos o mundo dos vivos. Algumas de nós são cientes dela desde que nasceram, outras são como eu, levadas ou jogadas para ela, por acidente ou predestinação."
Fim dos Dias.
Nas alturas, acima das chamas, abaixo das trevas, cercadas pela turbulência e os relâmpagos.
Só restava deixarm o restante do tempo escorrer:
- Não sou boa com palavras - me expresso melhor dizendo logo o que sinto, sem filtros, ou com meus punhos, ou através de Coração Ígneo, que é quase que parte de mim - mas tentarei contar tudo o que aconteceu: como falei, meu nome é Serafina....
Ano passado, depois do meio-dia de uma sexta-feira sonolenta, depois de longas seis aulas:
- Mi, vai a pé, ou vai de busão?
Michiko morava à uma caminhada da escola, mas...
- Sem chances de ir a pé, Su. Vou com vocês.
...mas estava esgotada demais até para suas funções normais, quanto mais subir a avenida com uma mochila cada vez mais pesada nas costas.
- Como você aguenta todo esse peso? - Suzana, a amiga de cabelos pretos e encaracolados puxa para cima a alça da bolsa escolar de sua amiga mais baixinha e de curtos cabelos lisos.
- Nem vem, é o mesmo tanto que você e Alice. Vocês estão é implicando com meu tamanh...
= Claro! - respondem num uníssono antes dela terminar a frase.
- Você é nosso chaveirinho, Mi <3
- Hmpf.
- Concordo com a Alice, você é fof... ei, você desce na Torre de Tóquio, né?
Era. Deu beijinhos, tchau e, enfim distante da influência sugadora de energias do colégio, tinha forças o suficiente para descer do coletivo num pulo, se despedir largamente com a mão das amigas que seguiriam a viagem e atravessar correndo o farol vermelho, pousando bruscamente na calçada da pracinha, sentindo nas costas o peso do material da escola, a corrente de ar e a buzina de um caminhão que passou no mesmo lugar em que ela estava segundos antes.
Coloca a mão no coração, assustada. Quase que foi para outro mundo por burrice.
Deu-se alguns minutos para se recuperar e deixou seu olhar vagar para a praça com suas árvores, a grama judiada, alguns bancos de concreto pichados, brinquedos que resistem heroicamente à depredação e a sua enorme torre de metal. Então percebeu algo estranho: era como se a observassem e chamassem. Estava sozinha, nem o vento estava presente, e vieram até sua cabecinha ainda abalada as lembranças do último filme preferido de Alice - de sussurros numa floresta, com perseguições na noite, cultos à entidades do mal, mortes inesperadas - o que fez suas pernas tomarem por si só a iniciativa de faze-la dar a volta na praça, contornando-a até sua rua em vez de corta-la por debaixo da Torre.
Três esquinas depois, chega em casa, um sobradinho no lado da rua que recebia mais sol durante o dia, nem grande nem pequeno para cinco pessoas. No momento, quatro delas estavam ausentes, conforme a rotina - pais no trabalho, irmãos mais velhos no colégio - então dava para relaxar alguns minutos antes de tirar a roupa da escola, ir pro restaurante dos avós almoçar e dar uma mãozinha.
Pôs a chave na porta e o celular dá o toque que recebeu mensagem: "Mãe: Mi, se chegou em casa, traz óleo. Acabou".
Sabe, esse tipo de coisa não deveria acontecer num restaurante. E sabia que ela não devia se demorar: entrou, jogou a mochila em qualquer canto, pôs numa sacola algumas latas, que deveriam durar até alguém chegar com um galão mais pesado que ela (não era, mas ninguém perderia a piada com seu tamanho) e saiu toda apressada com aquela carga desajeitada que machucava sua mão. Voltou o trajeto que acabara de fazer e dessa vez não precisava cortar praça alguma, era só atravessar a avenida e seguir mais um quarteirão e meio subindo à direita. Parou para descansar e, de novo, aquela sensação de chamado, aquele aperto junto do coração...
- Mi! Que bom que você veio, você não me respondeu se já tinha chegado. Vem, me dá a sacola, tá cheio hoje.
- Sextou, né, mãe?
De uniforme escolar mesmo, ajudou no caixa e na pia, sem descansar até a clientela diminuir a ponto de ter uma mesa sossegada só para ela mesma e, enfim, almoçar. Quando o fez, o cansaço acumulado da semana lembrou-a que ainda estava por ali e Michiko se permitiu comer devagar, divagando sobre aquela rotina. Era normal para ela, a família tinha o estabelecimento desde que ela se lembra por gente... onde passava boa parte da rotina com os avós, a mãe e os irmãos mais velhos...
- Onde você tá, Mi?
- Oi, Lu. To aqui e ali, em todo lugar e em lugar algum - brinca com o garfo, fazendo um nigiri passear no caldo de feijão do prato antes de comer.
- Pensando no namorado, é?
A mãe de Luana trabalhava na padaria ali perto, então ela estava sempre passando no restaurante: almoçando, conversando ou até fazendo bico no restaurante da família de Michiko.
- Hã? ...Não!
- Crush, então? É?
- Não, não tenho... tempo pra isso não. Só to cansada mesmo.
- Ah, que sem graça :P
- Você só pensa em namorado, é? - Michiko termina o prato e olha com mais atenção a amiga loira de olhos azuis.
- Alguma coisa tem de acontecer na vida, né? Só ir na escola e ajudar mamãe não é vida.
- ..."acontecer"... - digere a palavra como se fosse a última garfada do almoço. É, concordava com ela, ao menos em parte Oi! e tuDo o ma!s puro sUc0 dA diztopya e5cankarAda a no1te t3m pr0va quê?
- Michiko, você está bem?!
- Oihã... mãe? - o nariz estava doendo um pouco. O que aconteceu?
- Quer água?
- Você desmaiou e bateu de cara no prato. Você está bem? - sem saber o que fazer para ajudar mas querendo participar, Luana abanava a amiga.
- Precisa de água não, mãe, estou bem, estou bem - não sabia definir a sensação, mas estava passando. Olhou em torno, era o centro das atenções do restaurante - - fiquei muito tempo... desmaiada?
Ninguém soube precisar, mas foram alguns minutos. Mas já estava melhor, talvez um cafezinho pós-almoço ajudaria, e conseguiria terminar aquela sexta-feira como todas as outras sextas da vida dela. Só precisaria convencer a mãe disso.
NÃO!
Uma onda de luz invadiu o restaurante, tingindo o mundo de azul por um instante, e fazendo as pessoas sumirem.
ME AJUDE, POR FAVOR!
Michiko pode identificar de onde a voz veio antes de outra onda luminosa vermelha varrer tudo e trazer as pessoas de volta.
- Mi, que houve? Você está ok?
Depende do que você consideraria "ok". Estava desperta, estava saudável, mas seu coração agora era um bumbo acelerado. Segurou na mmão de alguém, Luana, assim que pressentiu outra onda azul vindo.
Estava sozinha novamente, segurava o ar.
POR FAVOR, VENHA ME AJUDAR.
Esperou por alguns momentos a onda vermelha acontecer de novo e trazer todos de volta.
ALÔ??
Não ousava responder, era uma voz de menino, longe, mas nítida. Viu que nada voltaria ao normal tão cedo, pegou uma vassoura como arma improvisada e foi para fora: ninguém, nem carros. Seguiu de lábios cerrados tentando localizar a voz que repetidamente chamava por alguém - não era por ela exatamente - volta e meia olhando para trás e para os lados, mas nada acontecia, exceto quando quase tropeçou numa placa de rua escrito "feijoada".
Sem surpresa alguma, percebeu que os chamados vinham da Torre de Tóquio - o apelido da grande estrutura de telefonia que construiram no meio da praça, mas que nunca recebeu equipamentos por problemas legais. Ia atravessar a rua e procurou por algo mais sólido que um cabo de vassoura, e nada. Pensou se chamaria de volta, e notou que a voz estava quieta, agora que estava próxima de onde ela vinha.
Olhou para os dois lados da avenida. Se sentiu idiota ao ver o semáforo, um objeto inútil num mundo sem carros.
Atravessou quando o boneco deixou de ser verde. Sentiu a onda vermelha chegar.
De cabo de vassoura na mão, sentiu seu fim chegar junto do caminhão que vinha para cima dela, no meio da avenida.
Ou seu fim, ou ela recomeçaria a vida em outro mundo no capítulo seguinte.
[continua...]