Cia. de Asas

Prefácio
Capítulo IIIIIIIVVaVIVIIVIII
ABC
Vb
Spoilers


Lá pelos idos dos anos de dois bolinha bolinha e alguma coisa, eu tinha um site de quadrinhos, o MushiComics. Nele, passaram vários autores de quadrinhos, trazendo histórias seriadas ou fechadas e um destes artistas era o Aurell Tenshi, com Principia, sua HQ meio onírica situada num mundo pós-apocalíptico.

Na mesma época tive uma dor de cotovelo crônica, um dos maiores buracos emocionais, espirituais que alguém pode se enfiar. Não recomendo o que senti a ninguém.


Sinceramente, não lembro mais quem sugeriu fazer uma HQ em parceria, mas aconteceu que eu e Aurell criamos uma. Aos poucos os elementos surgiram: seria um prólogo à Principia, contada em dois tempos: parte da narrativa em um futuro próximo, parte da narrativa nos momentos às vésperas do fim do nosso mundo e do nascimento do mundo de Principia.

E também achei que era o momento para começar a purgar o sentimento ruim que ainda tinha cicatrizes em carne bem viva na minha alma: recontaria de forma bem livre o que aconteceu comigo, e os personagens seriam releituras distantes de pessoas reais envolvidas naquele caos, até de mim.


Aí nasceu Cia de Asas, a história de Flauja, uma anjo que deixou de ser.


Migues!, a história fluía diretamente da minha alma para meus dedos: o tom melancólico, os personagens, muitas ideias. E Aurell desenhou várias páginas da versão em HQ, magnificamente como o traço dele sempre fora.

Só que eu, especialmente a parte criativa, sou delicada. E no meio de todo esse processo tive problemas no serviço, ou algo assim, a vida real cobra atenção de forma cruel às vezes e a história definhou: parei de escrever, Aurell também tinha as demandas dele e tudo meio que definhou.


O tempo passou, o MushiComics também morreu, mas Cia de Asas não estava esquecida: gosto muito do que esqueci naqueles anos cada vez mais distantes, um dia teria de retomar!! Ocasionalmente capítulos novos e fiz anotações que poderiam ser úteis. Em outra oportunidade, fiz uma revisão do texto escrito e, como tinha perdido contato com Aurell, tirei do material escrito o pouco que não pertencia a mim: tirei o cenário de futuro próximo, mudei para os dias atuais, onde o bombeiro futurista Ækir agora era Tábita, uma voluntária para resgatar vítimas em um desastre. Dei uma polida no texto e parei ali. Me faltava algo.


Aí, recentemente, me caiu a ficha: estou em um relacionamento estável a muito tempo, melhor tesouro de minha vida. As cicatrizes fecharam e não estava mais disposta a cutucar elas, nem para contar uma boa história. E mesmo se fizesse isso, a história agora não teria a espontaneidade daquela época, a qualidade do texto de um tipo que não repito mais, meu clima espiritual era bem outro. Então, achei melhor desistir de Cia de Asas, dar um ponto final que na verdade são três em sequência. Talvez isso ou aquilo do que escrevi antes ganhe espaço em alguma outra história mas, a trama como pensei que seria originalmente feita, acaba aqui.

Na verdade, ela já acabou, mas incompleta, para o leitor preencher as lacunas. Existe por aí toda uma literatura cheia de lacunas no começo e/ou meio e/ou fim, por "n" motivos. Seja Timeu e Crítias, o discurso de Platão que originou o mito de Atlântida, seja quase toda a obra de Tolkien, seja o mangá Berserker. Não ouso me comparar a nenhum dos citados, as ao menos estou bem acompanhada aqui :P


É isso. Seguindo a partir daqui estão os oito capítulos escritos (numerados em romano, de I à VIII), três capítulos "soltos" que encaixaria em algum ponto depois (nomeados "A", "B" e "C") e uma versão do capítulo V que chamei de "Vb", em que a trama muda abruptamente de trajeto e não lembro exatamente o que seria feito a partir daí, talvez os capítulos V e VII originais fossem jogados mais para o final, mas isso quebraria completamente as transições entre as partes que já tinha feito entre as partes VI e VII, por exemplo.





Capítulo I


Uma infinita planície gelada sob o teto de pesadas nuvens, separada pelo horizonte monotonamente... horizontal. Não havia vento, o frio intenso como se trazido do cerne do inferno congelara toda e qualquer pretensão de movimento. Era tudo cinza, liso, repetitivo, gelado. E cheirando ao saudoso cheiro da morte.


- Mãe, conta de novo da Era do Sol e de como era tudo antes do Grande Inverno para nós?

- Claro, Yurili, conto sim, mas antes você e seus irmãos vão procurar mais algo na ave para alimentar a fogueira, tá?

- Tá! - As cinco crianças saem animadas para a missão deixando Flauja sozinha e desprotegida de seus pensamentos, dispondo no chão do modo mais confortável possível os restos mais úteis que pegara do veículo destruído. "Vou sentir muito a falta dos meus anjinhos", pensa enquanto acompanha os cinco retornando de longe com poucas coisas a mais.


Logo o fogo estava crescido, realimentado com os pedaços do veículo estatelado na planície de gelo que um dia fora o Grande Mar Interior. Mesmo se enrolando em longas mantas e grossas peças de roupa, todos queriam se proteger do frio e para isso se enfiaram rapidamente embaixo dos acolchoados e cobertores salvos por Flauja, sentados sobre o que sobrou das poltronas, agarrados à mãe que esticava os braços tentando esquentar a todos ao mesmo tempo e que com os dedos brincava com os longos cachos de Yurili.

- Pronto, mãe, agora conte! - Driko reacendia o pedido da irmã.

- Vou começar a contar a história do começo, do Princípio... não, não dá para contar do Princípio - seria errado falar assim. A ideia de "Princípio" vale apenas para o rebanho da Criação que está preso ao tecido do tempo, como vocês, meus filhinhos, nascidos nesta fronteira entre as Eras, que nunca vivenciaram o Tudo sem uma cronologia banhando os sentidos. Eu tive esta sorte... e também a benção de ver a Semana em que a Inspiração se fez Luz, e Tudo o mais que surgiu depois da Luz: O Dia, a Noite, os Mares, as Árvores, o Sol, as Estrelas.... Ah, lembro tão bem de quando foram criadas as estrelas, foi lindo! Estávamos todos...

- Isso foi quando você era criança, mãe? - encolhidinho, um dos filhos interrompe a história da mãe.

- Xiu! - Yurili bronqueia.

- Não, Armo, não... sim, hum, é... realmente... isso foi quando eu era criança, mais inocente. - "não disse?" Armo cochicha enquanto mostra a língua para Yurili. - Naquele dia estávamos todos na parte alta do grande Jardim, quando a noite chegou e elas começaram a aparecer, primeiro as da margem leste do Firmamento, mas logo começaram a aparecer mais, uma atrás da outra, ocupando toda a abóboda até a última estrela aparecer no oeste, brilhando como se tivessem esperado uma vida para aquela estreia Pela primeira vez, o manto da noite chegou com o céu pontilhado de pontos de todas as cores. Foi lindo!"

- Mãe?

- Que foi, Alila?

- O que é estrela?


As nuvens no céu caminhavam pesadas ao sabor do vento. Yurili, a mais novinha, já adormecera por overdose de cafunés e agora era ajeitada no colo da mãe. Já os quatro maiores se ajuntam mais para fazer o calor render. A temperatura caia rapidamente a medida que o céu passava de cor de chumbo para tons mais noturnos. Cercada por todos e cercando a todos com os braços, Flauja continua seu papel de contadora de histórias.

- Alila, meu anjinho, estrelas são pontinhos luminosos que ficam do lado de cima das nuvens. ("Existe lado de cima das nuvens, é?". "Quieto, Armo!") Existem muitas, muitas, muitas mais do que você pode sonhar que existem e... um dia te mostro fotos, tá? Foi um de nós, que tinha estrela no nome, que se rebelou e desvirtuou tudo na Criação desde o Princípio. Por causa dele - uma longa história - eu e meus amigos nos prontificamos a ajudar a levar os que morriam aqui na Terra para seus destinos - outra longa história. E vim a este mundo tantas vezes e assisti a tudo, tudo mesmo, desde quando eram um punhado de seres frágeis perdidos na savana se multiplicarem em número e poder até superar em número as próprias estrelas, chegarem até as fronteiras do Universo, para depois se aniquilarem em seguida e refazerem esse mesmo trajeto do nada à glória e de volta ao nada exatas onze vezes seguidas.

- E o Sol, e o Sol?

Flauja sorri. Sabe que seus filhos são novos demais para entender tudo o que diz, o que querem mesmo é ter a atenção da mãe.

- Deixa eu ajeitar o Armo, que ele dormiu...

- Armo é bobo.

- Armo está cansado como todos nós. Estes foram dias cansativos, nem a ave aguentou e caiu.

Não aguentou, caiu, mas não morrera.

- Tá frio, mãe.

- Sim, tá frio. Se junta mais que esquenta, Driko - ela faz uma prece silenciosa de um instante antes de continuar - apesar de tudo, ela sabia que seria ouvida - O Sol eu lembro quando foi criado. No começo, quando ele era perfeito, seus raios eram estimulantes nas manhãs, e traziam a paz no fim de tarde. Nunca queimava a pele da gente, sua presença nunca faltava - mesmo sob as chuvas dava para sentir sua presença. Era bom. E deixou de ser bom junto com o mundo quando este mudou, mas também nunca chegou a ser ruim, como todas as coisas neste mundo...





Capítulo II


O sol bailava entre algumas das nuvens que ainda pontilhavam o céu, mas o pior da tempestade da madrugada tinha passado faz tempo e a luz do astro-rei brincava de criar reflexos coloridos de todas as qualidades nas gotas de água ainda presas nas folhas das árvores.

- Driko, é terrível...

- Já vimos piores e maiores, Flauja...

Com suas espadas em punho, o par de anjos se aproxima das primeiras árvores tombadas pela lama e detritos. Era como se um enorme monumento ao lixo da civilização tivesse se posto em movimento e aberto caminho na natureza e nas vidas à sua frente, sem pedir licença e ou se importar com as consequências.

O que havia de vivo ali, tinha já sido recolhido por seus colegas. Logo chegam na larga clareira aberta pela enxurrada criada pelo rompimento da barragem, que só foi detida pelo pobre rio lá em baixo.

Anjos que eram, eram plenamente ignorados pelos viventes apesar de suas asas espalhafatosas e auras de cores cegantes contornando suas silhuetas. Logo se juntam ao restante dos membros da sua equipe.

- Muito serviço para a Companhia de Asas?

- Só entre os mortais - Driko mesmo respondeu - são duzentas e vinte e seis pessoas. Algumas estão bem enterradas, foram pegas de surpresa durante o sono, ainda nem devem ter se dado conta que morreram. Armo chegou antes e está organizando os primeiros desencarnados, Alila está lá fora arrebanhando as árvores e os bichos - apesar deles normalmente acharem o caminho sozinhos.

Flauja encarava a enorme ferida aberta na terra enquanto ouvia seu colega, sem ligar muito para o trânsito febril de bombeiros e médicos que literalmente atravessava eles.

- Quer dizer, a Companhia toda está junta, como sempre, para o trabalho de sempre: levar todas as almas para seus destinos, sem deixar nenhuma para trás, depois dessa confusão enorme. Para variar: desafio! - Em um átimo, seu rosto sai de um tédio encenado para empolgação quase infantil - vou vistoriar em círculos, a partir das casas soterradas ali, da superfície dos entulhos até um palmo abaixo do solo antigo. Não vai sobrar um fantasma! Até daqui a pouco!


Sem esforço, a anjo planou sozinha até o ponto acima de onde estavam para começar a busca de almas literalmente desgarradas: encontrar pessoas era sua especialidade, estando elas vivas ou mortas. Flauja era famosa por encontrar tudo, nada conseguia se esconder dela. Nada lhe era oculto.

- Nem mesmo você, Kalel.

Ao seu lado havia uma parede coberta de azulejos bege com detalhes florais, percebia-se até o contorno de onde estava pendurado um vaso antes de tudo ser privado de seu significado. Agora a estrutura era apenas mais um pesado entulho carregado e emerso pela correnteza de lama tóxica e, através dela, outro anjo surge atravessando-a como se feita de lençóis.

- Err... Oi Flauja! - ele está sem graça, ela parece contente em rever o amigo querido.

- Tudo bom? O que você faz aqui escondido de mim, hein moço?

- Escondido...? Não! To aqui só de passagem! - Kalel ainda nervoso, mas a outra era só simpatia e o acalmava progressivamente.

- Poxa, a serviço, é? Metatron não te dá sossego...

- Nem fala. E o cara é chegado num discurso de horas que só sendo anjo para aguentar...

= Hahahahahah - riem juntos, Flauja dá a intenção que quer encostar num canto para conversarem mais. Afinal, ambos tinham todo o tempo existente disponível.

- Desculpe, não dá. Meu chefe está com pressa e come minha auréola se descobrir que parei para ver minha amiga preferida.

Sorrisos. Kalel se afasta como se fosse um vendaval.

- Tchau, irmãozão.

Flauja não percebeu, mas ele ouve isso ao longe, e se torna todo sorrisos, só não dando piruetas de alegria no ar para não perder a compostura.


Mais uma vez, a anjo estava sozinha na desolação rasgada na terra e com uma rápida busca nos escombros e estruturas soterradas confirma a supremacia de Armo na arte de juntar as ovelhas desgarradas em grande quantidade e levá-los ao ponto de encontro: não havia ninguém vivo nem morto nem na superfície de uma larga extensão do desastre, notadamente formada por lama, pedras roladas e poças poluídas que se banhavam dos raios do sol até alguns palmos abaixo de onde estavam pisos, gramados, estradas e plantações. Já vendo que seu serviço seria fácil, desenhava sem pressa o seu trajeto em forma de uma ampla espiral, subindo e descendo o novo relevo formado pelo desastre como se fosse a agulha de uma máquina de costura, atravessando sem cerimônia os detritos, solo, plantas, restos de moradias, corpos que agora eram cascas vazias naquele ambiente terrível, até que, finalmente, encontrou em um braço menor da enxurrada de lixo que se desviara para o norte um grupo de resgate - mortais, empenhados em escavar com pás e até com as mãos uma casa que fora arrastada pela corrente de detritos da barragem estourada, mas que estava relativamente inteira, inclinada, mas submersa na lama, à beira de um barranco. Cães não param de circular onde a maioria dos mortais estavam, indicando que bem possivelmente ali haviam sobreviventes.

Como tinha certeza de que não haveriam mais almas desgarradas para levar até Driko - o anjo que portava as chaves para os destinos além do véu - , Flauja aconchega-se sobre um poste (entortado para sentido oposto ao centro do desastre) para assistir e admirar o andamento do trabalho dos mortais: tempo nunca era problema, afinal, não era presa a ele. Poucos minutos de observação mostraram que a dúzia de mortais era um grupo tão organizado e eficiente quanto o dela, arriscando a própria vida para diminuir o desastre que ali ocorrera, e correndo contra o tempo e a falta de materiais para salvar uma vida que os cães ganiam que havia ali embaixo. Ela concordava com os bichos - havia alguém abaixo de muita lama, e assim como estava ciente de sua presença, sabia que ainda não era a hora dela partir deste mundo.

Homens, mulheres, o grupo agia coordenado em sua missão, empenhado em salvar, em fazer o melhor possível para desconhecidos que muitas vezes nunca mais veriam

- A única diferença eram as asas e de que lado da morte trabalhávamos - pensou alto, ciente que ninguém a ouviria.

Tensos e compenetrados, os mortais escavam o solo e reforçam as estruturas, tudo com a atenção e a pressa de quem sabia que a cada momento contava para quem estava soterrado e que a qualquer instante o instável local onde estavam se voltaria contra eles.


E foi o que ocorreu.


Primeiro houveram sons abafados e pedras caindo, paralisando a todos e forcando cada olhar para o barranco não muitos metros deles. Tinham acabado de resgatar da terra - viva! - uma menina, fato festejado até pelos cães, e agora o silêncio atento reinava: vários estalos, que começavam lá longe, se aproximavam aceleradamente.

- Corre! - como formigas que se descobriram sobre um ralo aberto, todos se afastam do barranco que vorazmente tragava o chão.

Flauja acompanhava todos, sem perder um de vista, mesmo uma moça que, para a anjo, era só mais uma no grupo até se separar dos outros por um momento. Era nítido que logo esta se tornaria parte das estatísticas do desastre e mais uma na contabilidade do serviço que Flauja tinha de fazer. O rosto da mortal estava sujo de barro e suor frio, aquele advindo do horror da consciência do próprio fim, mesclados ao horror da morte prestes à engoli-la numa bocada e, no desespero, com suas pernas falhando, a certeza de que não teria forças para conseguir, ela olhou para todos os lados, para os céus, para qualquer coisa, qualquer um que pudesse salvar sua vida.

Neste momento que Flauja percebeu que as pupilas dela se arregalavam de uma forma diferente do que alguém na beira da própria extinção, eram os olhos de alguém que a enxergava, e mesmo não acreditando, implorava ajuda. Para os vivos, a morte é uma questão de... vida ou morte. Mas, para quem conhece os mecanismos secretos detrás do mundo, o êxtase mais puro nas mais altas das esferas, vira a Criação e estava presente na vida antes da palavra "antes" ter algum sentido, "morte" e "dor" são conceitos menos fortes que espirrar depois de cheirar forte demais uma das flores dos jardins do Paraíso. Anjos não tem um fim a temer, não há instinto de sobrevivência - normalmente forjado pela seleção natural - refreando seus atos. São mais impulso, são mais paixão.

Assim, Flauja,

uma orgulhosa

representante dos

anjos da

morte,

decidiu que

não deveria ser apenas

espectadora dos eventos e

entrou em cena.


Para salvar uma

vida.


Com a certeza de que era invisível para praticamente todos, se jogou para o alto e antes de meio segundo a largura de suas asas abertas era maior que sua própria altura. Quinze décimos depois Flauja já puxava a moça para longe do perigo, mas teve o cuidado de, em seguida, desacelerar para não machucar o frágil ser vivo que segurava com as duas mãos. E em menos de dez segundos, ela já estava sã e salva num lugar seguro não tão perto de vários de seus colegas, meio que chocada, tremendo de adrenalina com a visão de uma anjo flutuando a sua frente com as mãos pousadas em seus ombros.

Anjo que por sua vez admirava seus traços e lia com avidez tudo o que transmitiam seus olhos. A mortal a intrigava, lhe fazia o coração bater perigosamente pelo que ela era, pelo que ela via, por ter algo de especial que Flauja não compreendia.

De repente, veio outro impulso... e porque não fazê-lo?

E porquê sim?

Hmmmmmmm....

Ah, vai "sim" mesmo!!

E Flauja se

atira

a beijá-la

na boca

antes de sumir para a mortal que ainda não acreditava que estava viva como se fosse uma nuvem de vapor.





Capítulo III


O frio fazia fumaça sair da boca de todos.

Flauja estava pensativa, relembrando. Driko dormia tão profundamente que roncava, a plateia de crianças agora estava reduzida a Alila e Nione, sob a trilha sonora dos roncos e murmúrios dos outros três menores. A noite finalmente tinha chegado e o frio realmente começava a flexionar seus músculos para o trabalho noturno. Flauja sabia que iriam precisar de muito mais de que seu calor de mãe e de uma fogueira de restos de ave que logo estaria dando déficits consecutivos de calor.

- Mãe, mãe! Por que parou de contar como as coisas eram antigamente?

- Desculpa, Alila, eu só estava recordando... Muito tempo antes de vocês nascerem, ou antes de eu conhecer o pai de vocês, mas muito tempo mesmo, havia um grupo de anjos que levava as almas dos que morriam para seus destinos no outro lado do véu.

- Que véu, mãe?

- Aquele que voc... nós cruzamos depois que morremos, Nione, para chegarmos a outra vida.

- E a outra vida é melhor que essa?

Flauja dá um suspiro dolorido de alma cansada.

- "Não se preocupem com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo. A cada dia basta o seu mal." - depois sorriu e beijou a cabeça das suas duas pequenas - Se ajuntem mais, filhas, quero todo mundo quentinho. Eu tava falando de anjos...

- Mãe, o que são anjos?



A temperatura abaixava sutilmente a cada minuto, fazendo as cobertas e a fogueira minguante se revelarem cada vez mais insuficientes. A plateia de duas meninas ainda estava acordada e com olhinhos atentos à mãe e sua história diferente de todas as outras contadas por ela até então.

- Sim, filha, anjos. São criaturas perfeitas que não existem, mensageiros entre Deus e os homens, inocentes por não serem constituídos de carne, mas da água e fogo, o que os faz infinitamente apaixonados nas suas atitudes. Todos os sentimentos do mundo passam em seus corações como fogo - o primeiro anjo que odiou caiu em chamas do céu numa explosão que abriu uma cratera até o centro da Terra.

- Verdade, mãe?

- É verdade sim, Nione. É lenda, mas também vi acontecer e... - Ela reluta em continuar o pensamento em voz alta: "por causa dele - uma longa história - me prontifiquei a ajudar a levar os que morriam neste mundo para seus destinos". Armo estava tiritando de frio, baixinho, mesmo dormindo. Flauja ajunta mais ainda os filhos para junto dela. Nione era a última desperta ouvindo as histórias da mãe. Sem vento, a fogueira ainda resistia bravamente com os restos do material combustível. Decidiu a continuar a contar sua história, logo até sua filhota mais resistente estaria dormindo.

- Uma coisa que você tem de saber, filha, é que anjos não são presos ao tempo, o mundo para eles passa de forma diferente do que para nós.

- É?

- E que por mais perfeitos que sejam, eles são muito imaturos, muito inexperientes nas coisas complicadas da vida, são inocentes. Nunca sentiram na pele a dor, o cansaço, a fome, justamente por serem perfeitos. E isso faz toda a diferença entre nós e eles.

- É mesmo, mãe?

- É sim. Por serem perfeitos, eles não sabem de muita coisa e não se dão conta disso.





Capítulo IV


O coração de Flauja estava em brasas, ela estava eufórica, estava se apaixonando, não devia, lutava bravamente para não se embebedar com o sentimento - afinal, por sua pureza, anjos são uma espécie de extremos. Sabia que tinha algo errado na situação, mortais não veem anjos!, não assim sem motivos. Mas, ah!, por Aquele que é Eterno, foi tão bom ser vista, ser objeto de admiração, ser temida e ao mesmo tempo mutamente rezarem para que os salvem.

Ela não tinha o dom de ler mentes, nem precisava disso. Bastavam a transpiração, o olhar, o ritmo cardíaco... todos estes sinais mais que bastavam para a experiência de uma anjo que tinha contato com mortais desde a aparição da espécie na saída secreta do Éden, na África. E os sinais vindos da mulher que salvara e a prendera em encantamento não diziam, gritavam com o botão de volume virado no máximo o que o coração de fogo de Flauja procurava sem saber, essa falta secreta de ser admirada/adorada que nem ela mesma sabia existir. Foi um momento único, por isso agradeceu com o beijo.

Mas precisava de mais.



Logo após encontrarem todas as almas dos mortos no desastre e os levarem para seus respectivos endereços no além, os seis anjos da Companhia foram confraternizar, como era de costume. Aquela era a hora em que o velho Luzeiro do Dia se punha, tingindo o céu em delicados tons de laranja e vermelho, num degradê cortado pelas sombras das nuvens e contorno das montanhas distantes.

O lugar escolhido era um conjunto de obras inconclusas e abandonadas numa cidade próxima. Alila cantava quase que divinamente inspirada enquanto Armo a acompanhava com uma rara melodia com seu instrumento de sopro. Todos os outros se reuniam em volta, sentados no chão e encostados às paredes e grades da construção, descansando, conversando. Flauja estava impaciente por dentro, adorava aqueles momentos com os amigos e, mesmo não sendo tão boa cantora quanto Alila, ela era a que mais sentia satisfação com o som da própria voz... só que, naquele momento, cantar era a última coisa que a motivava. Acordada, a anjo sonhava em coisas tais como descobrir qual era a voz daquela mortal, o que ela pensava dela, e afinal, por que ela a VIU?? Sentada na mureta que separava a festa de uma queda livre de vinte andares, embalada pela voz da colega que docemente preenchia o ar e os ouvidos dos presentes, os olhos da anjo focavam além do infinito. Até que uma mão aparece na frente de tudo isso, quase tocando seu nariz, trazendo no seu balançar a consciência dela de volta para a realidade onde estava fisicamente e agora.

- Minha pena por seus pensamentos.

- Que susto, Driko!!

- Uau! Você, assustada?! É assustador a melhor localizadora do Paraíso ser pega de surpresa! - e continua, notando a graça dum sorriso mal oculto sob uma falsa máscara de indignação da amiga - em qual chão de oceano estavam seus pensamentos, Flau? Nadava por entre as borbulhas dos peixes ou admirava a ternura dos corais das profundezas do mar?

- Não... não, eu estava mais longe e mais perto. Tem momentos que temos de nos despir de todos os títulos, rótulos, poderes e hierarquias para nos examinarmos, não?

- É... talvez. - o sorriso dele cede para o peso de uma face levemente séria e senta-se ao lado dela - Estava num desses momentos, Flauja?

- Uhum, estava sim. Mas não se preocupe, você não me pega mais desprevenida, nem para dar sustos, até porque... - de surpresa, Flauja o empurra para fora do edifício com uma das mãos - ...fui eu quem te peguei desprevenido agora :p

Naturalmente Driko abre suas asas durante a queda e faz uma curva fechada para o alto, bem antes de se aproximar do chão, com a perfeição de quem teve um passado eterno para praticar sem o medo da dor, de se espatifar, de morrer.

- Isso não teve graça, tá? - Diz ele fazendo um arco por cima do prédio, se dirigindo para trás da colega.

- Para mim teve muita graça. E nem chegue perto por quê tá na cara sua intenção, Driko!

Flauja se joga do prédio antes que o colega da Companhia o fizesse, exibindo suas asas em um ângulo de cento e oitenta graus, sumindo nas sombras lá em baixo, mas logo começando um pega-pega entre anjos que logo envolvia a todos do grupo.


Aquela noite foi boa. Na seguinte e em todas depois, Flauja já não estava mais entre amigos na Companhia.


[segue para Va ou Vb]





Capítulo Va


Flauja não teve sonhos, só a sensação de frio invadindo até o átomo mais escondido dos seus ossos. Ela não descansou, apenas dormiu até a hora em que seus velhos instintos a gritaram de volta ao mundo desperto, um lugar tatilmente negro. A audição era o único sentido válido agora, mas seus ouvidos não revelavam nada além do cansado som de sua própria respiração, pesada e afetada pelo frio intenso.

Mas eles estavam lá.

- ...Kalel? - esperançosa, chutou o nome menos provável.

- Kalel não veio, nem tem motivos para vir - "Eu odeio estar certa".

Aquela voz era de anjo, e certamente haviam vários deles, cercando ela e seus filhos. Houve uma pausa semiconstrangida e continuaram.

- Faz muito tempo, não, Flauja?

- E o que você sabe de tempo, Yurili? Para você é um acessório, usa ou não se quiser, para mim fui obrigada a viver cada minuto, um de cada vez...

- A escolha foi tua.

- ...Sim, para mim foi muito tempo mesmo. Séculos de séculos. De séculos. Sim, a escolha foi minha e não me dê lições de moral. E apareçam, iluminem aqui, por favor. Vocês não tem nem a distante noção do que é conversar sem enxergar nada nesse frio.

Flauja mudou e desmudou muito desde os velhos tempos, mas seus ex-companheiros não. Eles eram perfeitos, a perfeição não muda, portanto eles eram previsíveis para quem os conhecia bem... como Flauja, por exemplo. A primeira a aparecer relutantemente foi Yurili, asas abaixadas, iluminando calidamente a desolação gelada com sua aura e espada flamejante em punho. Portava uma expressão severa que fez Flauja quase duvidar da imutabilidade do que era perfeito.

Ela era majestosa como um anjo da morte tem de ser, assim como Driko, que surgiu à sua direita, na mesma postura da colega, mas trajando vestes negras pontilhada de olhos dourados que insistiam em olhar fixamente para Flauja e sua prole adormecida. Diante de tais visões, a mãe lutava leoninamente para conter seu pavor instintivo frente à morte e manter a postura pétrea frente àqueles que foram seus amigos um dia. Apertou-se mais de seus filhos, gelados de frio, à medida que Alila e Armo também emergiam das trevas, finalmente seguidos por Korel.

Agora ela tinha toda luz que pedira, mas não tinha nem um nada a mais de calor. E ganhara também um encontro e provável enfrentamento adiado há eras.

- E você, Nione, não vai aparecer não?





Capítulo VI


- E onde você estava, Flauja?

"Não ser atada ao tempo tem várias vantagens."

- Não saí daqui!

"Uma delas é parar, avançar ou voltar nele como se estivesse passeando num parque. Claro que mesmo nesse parque tem lugares escritos 'não pise na grama', mas nem sempre os guardas estão olhando, né?"

- Você sabe que eu sei que você está mentindo, Flau!

- E você sabe que eu sei que você acha que sabe o que eu sei, Nione!

Uma breve pausa na conversa e o par de anjos explode em risos.

- Você não quer mesmo me contar o que está acontecendo?

Flauja faz um "não" com a cabeça, sorridente.

- Tudo bem, mas esconde direito teu segredo por que tá estampado na tua cara que você esconde um segredo... bom, vou para o serviço. Espero te encontrar lá.

"Outra coisa interessante é quando você reencontra outro anjo e viver a incerteza se ele é o mesmo de cinco minutos atrás, de um milhão de anos atrás ou de vinte anos no futuro. Há limites para se ficar zanzando na História, mas até os limites são fluidos". E mal Nione sumiu, Flauja voou dois quilômetros para sudoeste, meia hora para o passado.


Ok, era loucura, era ilógico. Mas foi divertido.

Com as dicas involuntárias de Korel, Flauja conseguiu vestes adequadas, ficou a par das regras de sociedade mortal. (Anjos da guarda sabem tudo sobre o estilo da vida mortal, mas são paradoxalmente distraídos - não é a toa a quantidade de acidentes bestas entre os mortais) e chegou invisível a um hospital próximo, passou pela portaria com um pacote de roupas num braço e sua inseparável espada, que em momentos de misericórdia uma gota de seu veneno abreviaria o tempo de vida de um moribundo, na bainha. Como era de sua natureza, logo achou Tábita conversando com seus colegas num dos leitos. Um braço quebrado, vários arranhões, mas ainda viva. Estavam falando dela. Na verdade, ela recontava a história do anjo que viu e o salvou com o ânimo de que está repetindo o enredo pela milionésima vez consecutiva, apenas para satisfazer a curiosidade das suas colegas. Ninguém, nem a própria Tábita acreditava na cena do anjo, mas para seus companheiros, o salvamento da colega foi considerado um verdadeiro milagre. Para ela, uma misteriosa sucessão de fatos irreais que lhe salvaram a vida. E para Flauja, uma emoção nova.

Sentada no parapeito da janela, Flauja se deixava levar pela figura da mortal salvara. Ela não entendia ainda como a enxergara naquela hora, mas isso fazia parte da química que levava seu coração a reservar um grande espaço para ela. A paixão que constituía seu ser estava fervendo dentro dela, seu impulso era de explodir em atitudes para tê-la.

Mas o momento, agora, era de admirar apenas.

Em seguida virão os momentos de se aproximar.


.....


Horas depois, estavam as duas rindo numa sorveteria, conversando como se fossem velhos conhecidos.

- Desculpa mesmo ter trombado em você...

- Tudo bem, não me machuquei e saí no lucro: ganhei um sorvete e uma amiga.

- E eu também. E nada me tira da cabeça a impressão que já te vi antes.

- Você sabe que já me viu - Flauja solta um sorriso enigmático.

Tábita fica pasma. A anjo percebe que fez besteira, não esperava justo esta reação dela.

- É sério que você não tinha notado?

- Sim, não, quer dizer... - ela põe o indicador nos lábios de Tábita, como se pedisse silêncio. Algo a transtornou de um instante para o outro.

- Tenho de ir, tem gente me procurando.

A beija na face esquerda e apressada. Do outro lado da porta, já não era mais visível aos mortais.

- Você e seus segredos, hein, Flau?





Capítulo VII


- Eu tenho direito a ter segredos também, Flauja - Ainda era a mesma Nione de uma eternidade atrás, rosto redondo, cabelos lisos e eternamente curtos. Sua aura e espada iluminavam - como sempre - a todos com a luz de um por do sol.

- Tem sim. Mas eu ao menos soube esconder, não? Era evidente que você estava por aqui. Deixei minhas asas com Metatron há mais tempo que o alcance da História, mas não fui privada de meu dom... E, por favor, todos vocês, sentem-se.

Os seis anjos entreolharam-se.

- Ah, esqueci que vocês não tocam o "solo corrupto do mundo". Flutuem, finjam ao menos que sentaram ao chão - dá torcicolo olhar para vocês assim de pé, e sinto que vocês vão demorar muito até me levarem. Não quero ir para lá com dor no pescoço.

- São teus filhos, Flauja?

- São sim, Korel. Vocês sabem os nomes deles? - Um largo sorriso no rosto cansado, sempre quis fazer isso - Essa aqui é a Yurili, Driko e Armo; Alila está encolhidinha aqui em baixo e aqui tá a Nione. Uns anjinhos, não?

Sorrisos sem graça entre os homenageados. Flauja estava transitando entre a resignação, o desespero e o orgulho de mãe apresentando seus filhotes. E sofria cada vez mais com o frio, seus filhos gemiam.

- Não teve um Kalel?

- Desculpe, cinco é bem além do que posso dar conta. - Ela tinha força para ainda sorrir, até Armo soltar a pergunta que todos estavam segurando:

- Então valeu a pena toda aquela confusão?

Flauja fecha a mão no punho mais duro que fez em toda a sua eternidade para em seguida se apertar mais no abraço aos seus. Ela desiste de olhar para seus ex-amigos.

- Ah, vocês estavam demorando....! Todo este tempo e vocês só pensam nisso? Eu estou morrendo congelada, logo vocês vão me levar e aos meus filhos, e vocês só pensam nisso?? Vingança?

Até aqui o ar estava tenso e pesado. Era tão grosso que os interlocutores davam longas pausas entre uma fala e outra.

- Um engano atrás do outro Flauja. - Armo impõe sua vez de falar - Não é vingança, estamos curiosos. Você traiu a todos nós de forma...

- Vocês são um bando de orgulhosos, isso sim! - Na ira, Flauja manda às favas a atmosfera densa. Suas exclamações são como metralhadoras apontadas para aqueles que conviveram com ela num passado mitológico.

- Você magoou a todos, Flau.

- E o tempo não existe, não para nós. Não fale em "todo este tempo". Você sabe disso. Quando recebemos uma mágoa ou ferimento, não é criado um momento para existir em algum ponto do passado. Se torna algo que existiu e vai existir para todo sempre e...

- Blablabla. Vocês são um bando de crianças.

- Somos inocentes, você não. - Driko

- São crianças mimadas, que não tem noção do que é a Criação fora do Paraíso.

Os espíritos estavam tão inflamados que eram capazes de ressuscitar o mar interior onde a ave caiu.

- E você foi a mais mimada de todas, que abandonou os amigos e trouxe desgraças a esse mundo por seu egoísmo! - Nione - Não prestou atenção no que acontecia em torno de você, bêbada em sua própria asnice!

- Amar não é asnice!!

- Não vulgarize o verbo amar! Paixão não tem nada com amar! Desejo não é amor!

- E o que você sabe sobre o amor, Nione?!

- Se você tem esta dúvida, então nunca foi um anjo de verdade! Você tem a obrigação de saber o tipo e o tamanho do Amor a qual me refiro!

- ...

- E então, valeu a pena?





Capítulo VIII


"Por quê o cachorro atravessou a rua?"

"Para chegar ao outro lado."

Flauja e Alila foram as que chegaram para trabalhar no acidente de trânsito: um cachorro atravessou a rua, fazendo o motorista perder o controle da direção e bater. Ele conseguiu escapar escapando do carro instantes antes de bater, mas sua namorada não teve essa chance.

- Ordens do Alto, ordens do Alto! - Kalel chega sem aviso mostrando o pergaminho e apontando para ele. Não é para levar a garota, sob circunstância alguma!

- Que tem ela?

- E eu sei? Sou só quem transporta os recados. Tudo bem, Alila? Tudo bem, Flauja?

Flauja está longe nos pensamentos, apenas Alila responde de imediato:

- Tudo sim, Kalel. E como vão as coisas as coisas lá nos Altão.

- Dentro da normalidade, estão um tanto agitados estes dias, mas tudo dentro da normalidade.

- Tudo, tudo...

- Que foi, Flauja?

- Ahn, nada. Gente, como foi alarme falso, vou aproveitar e ir ali resolver uma coisinha pendente. Nos encontramos na próxima. Até.

E agora são apenas dois anjos assistindo o resgate da garota que em breve estará morta, mas não será levada.

- Flauja anda estranha, Lila. Será que ela percebeu?

- Não sei, mas acho que não. Ela não se toca para muita coisa.

- Acho que ela está mudando.

- Anjos mudam? Somos eternos.

- Nem todos. Metatron que o diga.





Capítulos "Soltos"

Capítulo A


- Belo trabalho de anjos da guarda vocês fizeram. Eu não podia ter morrido de forma menos idiota não?

O cenário não é um deslizamento de lixo tóxico em regiões de mata nativa: Flauja agora estava em um ambiente radicalmente urbano, levando pela mão e por entre as multidões que não os notavam um senhor que pouco tinha passado dos quarenta mas que nunca chegaria aos cinquenta.

Ela para e aponta para trás: o corpo do homem estava estatelado na calçada logo atrás, no centro de uma multidão que crescia como massa no forno.

- Em primeiro lugar, não sou anjo da guarda, meu departamento é outro - é aquele que é chamado quando é tarde demais para guardar alguém. E segundo, por mais que o Korel te guardasse, não tinha como corrigir a burrice que você mesmo fez!

- Mas eu só queria mostrar aos meus funcionários em treinamento que aquele vidro era muito resistente. Dei uma corridinha para bater de ombros nele...

- E a resistência da janela não era o que te propagandearam.

O corpo estava lá, estatelado. Paramédicos tinham acabado de chegar e abriam espaço por entre a multidão.

- Trinta andares para baixo demoram bem mais para chegar do que parece. Coube o filme da minha vida toda, sabe? Para onde eu vou agora?

- Segue adiante, logo você vai estar num túnel comprido. Quando chegar na luz, te darão a resposta.

E ele vai. Korel, que estava entre os curiosos, se aproxima.

- Tem certeza que ele entra no túnel sem ajuda?

- Você que era o anjo da guarda dele, o que acha?

- Hmmm... entra sim. Ele foi bem adestrado pela empresa que trabalhava, provavelmente está repetindo para si próprio algum "mantra" que aprendeu em algum treinamento, tipo ser proativo e tempestivamente bater as metas que esperam dele no pós-vida... algo nessa linha. Mas, e você, Flauja, o que quer? Sou um anjo da guarda, mas não tão distraído assim...





Capítulo B


O sol se punha tingindo o céu em tons de laranja e vermelho, num degradê cortado pelas sombras das nuvens e contorno das montanhas distantes. No alto de um velho prédio de uma cidade abandonada, era visível a silhueta de Driko contra o sol, aguardando em pé de asas fechadas e sua mão sobre a espada que estava encostada no chão. Flauja apareceu em seguida, voando vinda do sul [da direita, se você está de frente do sol poente], pousando levemente ao lado do colega.

- Que faz aqui, Driko? O povo da Companhia está te esperando para comemorar.

- Só estava te esperando para perguntar...

- ...Se eu já me decidi? Ainda não sei, por favor, não me pressione... Eu prefiro a gente bem como sempre a gente foi.

- É o que quero também. Mas não me deixe preso esperando pela eternidade...

Flauja se vira como se não ouvisse mais ele, sorrindo enigmaticamente com o olhar fixo no infinito.

- No que você estava pensando, anja?

- Nada, anjo. Só em coisas boas. Vamos?





Capítulo C


O passado, fora do mundo:

- É algo horrível, Yurili.

- É, eu sei o que você está passando, Kalel.

- Eu precisava mesmo desabafar, desculpa ter jogado esta bomba justo para você.

- Tudo bem, tudo bem.. E o que você vai fazer?

- Não sei, esquecer, não sei...! Isso não é certo.

- Aiai.

- Tenho muito, mas muito medo mesmo. Eu vi bem de perto o que aconteceu com Estrela da Manhã.

- Não fale asnices! Tem muita diferença entre você e ele.

- Mas foi paixão impossível da mesma forma, não?

- Ai, Kalel, não fala merda...

- Oioioi! - Ambos se calam como se tivessem chegado ao mundo naquele momento e olham para a recém-chegada:

- Oi, Flauja!

- Tão descansando, é?

- Claro! Até a gente tem direito a dar uma pausa entre uma eternidade e outra... E você? Para onde tá indo?

Flauja se espanta em não ter uma resposta pronta.

- Ahmm...éééé, vou ali. É. Ali. - Aponta - Alguém engasgou com caramelo. Fui.

E foi.

- Ela anda estranha estes dias, não?

- O povo em torno dela anda estranho estes dias. Não gosto disso.





Capítulo Vb


Já deveria ser umas oito da noite, ou pouco menos que isso. Nione finalmente adormecera e não havia mais motivos para Flauja continuar seu relato. Armo tinha parado de tiritar quando todos os seus irmãos começaram. Mãe e filhos eram um bolinho único de mantas e corpos agrupados no nada abaixo de zero, pouco distante dos restos de uma ave tecnobiológica destroçada, isolados num oceano interior congelado há um ou dois milênios. A única luz era a do fogo e das brasas, protegidos do gelo estando sobre uma porta de aço da ave que se soltara na queda.

Aos poucos, as nuvens decidem descer aonde a família estava e tudo se tornava branco, com exceção das chamas, que minguavam até resolverem se apagar.



- Flauja, Flauja? Ah, aqui está você menina!


Os olhos da alma da ex-anja se abrem confusos, ela estava numa planície gelada, mas não no Mar Interior. Seja lá o que aquele gelo todo fora antes, não era água do mar. Havia um leve quê de podridão no fundo dos seus sentidos que Flauja estava demorando demais para decifrar.

- Vamos, vamos, tenho de te levar. Hmmm, faça força para se levantar, você é pesadinha sabia. - Ainda acordando, demorou para o cérebro de Flauja interpretar que havia outra pessoa naquele ambiente que agora a puxava pela mão. Tinha voz de mulher, mas um grosso capuz negro com detalhes geométricos rubros ocultavam sua identidade. Ao fundo, ouvia-se murmúrios

- Ir com você? Mas... e meus filhos?

- Ih, relaxa! Você está aquecendo eles lá em cima, agora... abaixe um tanto este roupão, quero ver como ficaram...

Num gesto isento de educação, a estranha desata um tanto as roupas de Flauja que descem pela gravidade, mas que são impedidas pela mãe antes de desnudarem seus seios.

- Não precisa ser timidinha, menina. Já vi milhares que nem você, relaxa. Agora vira um tantinho... - A figura gira Flauja como se fosse um manequim até ver suas costas.

- ...

- Não se preocupe, pronto, já matei minha curiosidade, só queria ver suas costas - não teu cofrinho, relaxa - já te falei três vezes pra relaxar. Estas feridas devem ser muito doloridas, não?

- ...

- Pode fechar o casaco e... - começa a apalpar as ancas dela com as duas mãos - hmmm....

- Ei!

- Ah, achei - a estranha puxa algo e revela uma velha bainha que Flauja carregava nas laterais presa a um cinto - é... realmente, te privaram de tua espada...

- Quem é você?

- Você sabe quem sou, daqui a pouco vai se lembrar, ah se vai! Me dê a mão, vamos sair do Cocito antes que te achem.

De repente, os murmúrios que ela ouvia ao fundo ganham cor e significado. Eram zilhões lamentando num volume quase inaudível, um zumbido congelado de dor.

- Cocito? Então aqui é o Inferno..?

- Isso, na quinta onde você deveria estar. Agora fique quieta, já disse que não quero que te achem!

Um medo frio como o ar invade Flauja, que fecha a boca para não falar mais.

- De qualquer forma, você está aqui só de passagem, vamos. Temos de subir dois círculos.

O Cocito era um lago congelado imenso, provavelmente tão grande quanto o mar onde a ave caiu, mas não era lisa quanto a planície de gelo que aos poucos congelava Flauja e seus filhos. Não. A sensação aqui era de estar andando sobre uma imensa sopa congelada, pontilhada de corpos semi-imersos, alguns até os ombros, outros até o pescoço, todos lacrimejando contorcidos da dor criogênica, capturados em gelo eterno, sussurrando ininterruptamente o arrependimento tardio de todos os seus pecados e a agonia das eterna dor.

Além de tudo, era impossível não pisar em ninguém.

- Ai! - No primeiro passo da ex-anja, um dos condenados exclama e ela se detém.

- Ande, Flauja, ande!

- Mas... estamos pisando... neles!

- Ai! Anjos são mais burros que mortais, eu esqueci, ok... aula relâmpago, presta atenção:

1) Aqui é o Inferno.

2) Eles são condenados.

3) Já se foi o tempo do perdão para eles.

4) Portanto, aqui É para pisar neles, errado se você não fizer isso!

- É, eu... não tenho certeza...

- (Aimeusacoquenãotenho!) Flau... larga de frescura e corre! - E a puxa para correr.

AiUiAiUiAiUiAiUiAiUiAiUiAiUiAiUiAiUi

Em alguns momentos Flauja se sentia pisando em sucrilhos, e ciclicamente sentia suas costas serem varridas por um vento gelado e forte... tinha certeza de quais pares de asas provinha tal ventania. Então, a direção correta a seguir realmente era a que estavam indo.


Logo a muralha externa do lago congelado estava aparente no horizonte e se tornava cada vez maior a medida que as duas chegavam. Sua companheira sem nome pisava sem se importar nos condenados presos no Cocito - às vezes ria até - enquanto Flauja desajeitadamente tentava tocar apenas o gelo com as pontas dos pés, enquanto pedia milhões de desculpas - e para se sentir menos culpada, ela pede milhões de desculpas ininterruptamente - toda vez que sua intenção não se realizava.

- Pula!

Assim que estavam bem próximas da barreira que contia este círculo, a desconhecida puxa Flauja para o lado, e no segundo seguinte um enorme pedaço de muralha atinge exatamente onde elas estavam.

- Buceta! Abre os olhos e segue atrás de mim!

Entendendo o que acontecera, desta vez Flauja percebe o deslocamento de ar, quase ouvindo os assovios finos que os murmúrios dos mortos ocultavam. Ela nunca deixar de ser a melhor em localizar coisas:

- Vem dois pedaços, três!

O estrondo de gelo e ossos partindo se misturam aos lamentos dos condenados. Flauja ainda era puxada, com menos delicadeza enquanto guiava a companheira sob o bombardeio até que são paradas por uma falange de demônios.

- Ora, ora, Urraca, a única filha de Briaj da septuagésima primeira divisão do Nono Círculo e aquela que se alia a anjos, trouxe carne nova para o Inferno?

(- Ur... Urraca??)

(- Odeeeeeeeeeio meu nome!)

- Tire sua fuça de lixo da minha frente, estou à serviço de meu pai, cara de bosta. Essa é Flauja, ex-anja da morte que foi expulsa das legiões celestes por egoísmo, roubo e traição, e vou levá-la à meu pai, que a aguarda.

- A teu pai? Aquele que disse que fraquejou quando você nasceu? Aquele que estripou e devorou cada filha que teve assim que saíram do ventre de suas mães? Teu pai só dá valor aos filhos varões, enormes, todos os círculos e esferas do Inferno sabem disso, rachadinha.

- Tô ficando mole mesmo... você só nasceu porque teu pai foi violentado por um caminhão de laxante e tu acha que tem moral em cima de mim? Sai da frente que tenho mais o que fazer.

- Estou aqui em nome do avô de teu pai, a quem você deve mais obediência, e exige que entregue a dona podada aí para ele, lady Urraca, a Fraquejada.

- Você sabe que não reconheço a autoridade daquele papa-hóstias que você segue, Çawno'habo.

- Olha quem fala em "papa-hóstias", aquela que tatuou uma santa católica na....

- Na bunda, que é minha e faço o que bem entender dela!! ò_ó Eu era adolescente e assim mesmo, tive mais culhões que todos vocês juntos, bando de cachorrinhos que amarelam para qualquer ordem do meu bisavô.

- Você pode se achar a pica das galáxias, que seja, mas sabe que sozinha não pode com todos nós. Assim, então.... você vem com a gente, ou gente te leva. O que prefere, Urraquinha de presépio?

- Que tu é burro, isso tá escrito na tua testa em neon vermelho e piscante desde o princípio dos tempos, mas para mim é novidade você não perceber o que tá na tua frente: não estou sozinha, e qualquer anjo da morte armado ganha de vinte legiões.

- Ha! Pode até ser, Urra-Vaca, mas ela está desarmada! Os Céus reivindicaram a espada dela quando retiraram suas asas! Sem garras e sem poder voar, ela é tão perigosa quanto uma galinha.

Em um gesto rápido, Urraca exibe ameaçadoramente uma adaga que escondia sob a capa.

- Ô bestão, esta aqui é a minha garra... - e, um segundo depois, rasga a barriga de Flauja e arranca uma de suas costelas - e, em nome da Serpente, aqui está a dela!

A dor e o choque são tão imensos que não dão à Flauja sequer a chance de gritar.


No Inferno, as trevas inundam sua mente e se tornam um com ela.





Spoilers


Fiz um resumo em poucas linhas do que pretendia depois disso, mas achei meio broxante - resumos são sem sal por natureza e algumas trilhas de personagens eram beeem óbvias. Se quiserem ler, por conta e risco, me peçam o link =p



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