Decifrar. O mais rápido possível antes de ser devorado.


Estava eu no Templo do Consumo, pensando em Beatriz (morta), admirando o panteão escancaradamente exposto em suas vitrines, colorido e efêmero, com seus hinos, totens e imagens, quando a deusa apareceu, olhos amendoados, longos cabelos negros, envolta em flamas douradas.

Em suas mãos, a garrafa. Grande, simples, com alça, feita de um vidro prateado-escuro e tapada por uma velha rolha de cortiça. "É isso o que você deseja, não?"

Ela me entrega e ergo a garrafa contra a luz fluorescente. Os transeuntes parecem não nos notar. Dentro, está Beatriz, sem rosto, olhos e um sorriso rabiscado em lápis de cor. Vestido vermelho, com asas de plástico cor de rosa presas em suas costas. Ela parecia pateticamente feliz.

- Não desejo mais. Beatriz não existe mais no mundo, isso aqui não é mais ela. Fez a escolha errada e perdeu-se na garrafa, jogou fora conscientemente tudo o que tinha em troca do maior desejo dela. Agora está aí, deturpada, presa onde não vai querer sair, até que pare de respirar. É uma troca que não vale a pena, não vou querer essa garrafa como ela quis.

- Bonito discurso.

- Eu decorei.

- E o que farei com a garrafa e seu conteúdo?

- O que tem de ser feito.

Uma lágrima correu alguns milímetros antes de evaporar no rosto dela. Meu coração estava pesado, e de repente o ar invadido por uma nota cantada por um coro de vozes invisíveis. Luz. Calor. Chamas. E a garrafa era consumida com seu conteúdo até o último átomo. E as vozes se calaram.

- Bem clichê...

- É para ser solene, não inovador. Ainda mais aqui, onde todos acham que são exclusivos, mas procuram atender seus desejos feitos em série, fabricados em linha de montagem, pagos com o suor de uma vida milimetricamente rotineira. Acreditam terem prazeres e problemas únicos, mas quase tudo o que sentiram, passaram e fizeram é praticamente remake de um filme antigo com atores novos e acréscimo de efeitos especiais.

- Belo discurso.

- Foi você quem começou. E agora, o que você vai fazer?

Uma faxineira passa entre nós e varre as últimas cinzas.

- Te convidar para o cinema. Aceita?

Seu rosto é indecifrável. Achava que não ia gostar, mas no fim, parecia que ela achou algo engraçado na situação.

- Quando eu estiver desocupada - E desapareceu nas próprias chamas, mostrando a língua marotamente.

- E isso vai ser nunca, pelo jeito...


Fim.





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