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27 de janeiro



Claro que ela ainda queria! Ir para a casa de Maria era melhor que ficar presa em casa e, assim que sua mãe a autorizou a ir - condicionada à arrumação e separação da roupa suja do quarto, atividade complicada mais pelo fato de subir e descer as escadas (já lavadas para cima, para lavar para baixo) do que pela limpeza em si: ela não era organizada, mas disfarçava bem. Mimetizar os padrões de capricho e espero da mãe estava se tornando uma de suas especialidades :Þ E, entre uma leva e outra, separou alguns minutinhos para trocar os livrinhos de lugar: agora estavam atrás do guarda-roupas, lugar menos achável que debaixo dos bichos, mas que Klara concordava que não poderia ser definitivo - apertou o passo até a esquina para escapar do risco dela mudar de ideia

O caminho mais curto para chegar à casa da amiga era virar a esquina, descer a rua, virar à esquerda, atravessar a passarela e descer duas quadras, passando em frente do posto policial da rua Praga, região considerada segura por seus pais e que havia sempre uma calotita de ronda. Era uma rua relativamente sossegada, e como não tinha ninguém olhando mesmo, Klara ousou para reclamar em voz alta para o Astro-Rei:

- Poxa Sol, tu bem que poderia se esforçar e vir para fora hoje, sé? Já miou ontem comigo, e hoje ainda não procurou salvação!

O Astro-Rei - deprimido com o fracasso de ontem e com o frio repentino desta manhã - até que gostaria de dar uma resposta à baixinha insignificante parada na calçada, mas antes dele se manifestar reclamando da injustiça do universo, de imputarem nele uma culpa que era das nuvens e das frentes antárticas vindas sem convite de ninguém - um sonoro "atchim!" se ouviu atrás da menina, quebrando o silêncio e o clima. Surpreendida, Klara se vira para ver quem foi, mas não havia ninguém lá, não ao alcance dos seus olhos rápidos e atentos. 0.0'

O silêncio corre para longe

...e retorna.

Intenso.

E pela intercessão dele que os ouvidos de Klara identificaram o ruído de algo se mexendo, dando a pista para que sua vista captasse pegadas no cascalho espalhado que um dia será uma calçada. Coraçãozinho batendo, procurou o dono da pegada e dos espirros em torno de si mesma e na construção ao lado dela - um conjunto geminado de cinco casas de três andares. Não ousou sequer respirar para não fazer barulhos, caçou por mais sinais de que não estava sozinha, sem mexer nada do corpo além de seu olhar arregalado, congelada dos artelhos até o arquinho de cabelo.

Mas se alguém espirrou sumiu com o próprio espirro... e logo o instinto de sobrevivência da menina a fez se afastar dali com passos largos. Ligeira, correu rua abaixo mais do que suas pernas permitiam, virou à direita e parou abruptamente no portão da casa Maria!

- Gema!! Tu checou!! ÊêêêÊêê!!!

...onde a própria a aguardava.


Foi uma tarde produtiva: brincaram, desenharam, leram revistas em quadrinhos e colocaram as novidades em dia. Fizeram toda a liturgia do que as divertia e as entretinha por horas, com pequenas variações que poderiam ser aproveitadas nos encontros posteriores, caso aprovadas. E, quando o Sol estava no terceiro quarto da sua caminhada no firmamento - ou deveria estar, o teimoso não atendeu o pedido da nossa personagem e ainda curtia sua fossa, isolado atrás das nuvens, decepcionado com o mundo... - Klara relatou para a amiga o caso do espirro e das pegadas descalças no cascalho. Maria prestava atenção enquanto as duas bonecas no inalador ("Tainá" e "Naitá", elas pegaram uma gripe estrangeira, mas estão melhores), e no meio do mais gostoso bolo imaginário de noranto que jamais existiu sentenciou:

- Ah! Julco gue tu encondrou a "Menina das Treze Alme"!

- Quê?!

- É, du não sape? - Põe Tainá na caminha enquanto faz Naitá escovar os dentes - lempra taquela escola, ano redrasato? Engontraram treze morti e deste lá essa menina assompra as ruíne...

- Por quê?

- E eu zei? Bergunte pala ela!

- Eu não, mas... - Klara pausa por um respiro para organizar os pensamentos antes de falar. Lá fora, as nuvens pastavam calmamente no céu, um tapete cinzento indo devagar para lugar nenhum - Aquela escola é longe, o que ela está a fazer por aqui?? o.O

- Ás veces era canzou-se de lá e esdá de mutança bara a noza...

(Dois segundos para o pavor correr a espinha das meninas de alto a baixo em forma de arrepio)

= O.O!

= Eu não guero estudar em uma escola assomprada não!!

- Ei, alquém guer suco de frute? - a mãe de Maria aparece sem aviso, disparando um

= AAAAAAAAAHHHHH!! - ...de duas meninas assombradas.

- Estas menine de hoje, cata vez mais medrose - Maria-mãe põe a bandeja no criado mudo, debochando - filia, tu pulou tão aldo que guase grudou no teto.

- Tu é boba, mã. Não fi graça - e recolhe Qwé, jogado para longe no susto.

- Esdavam a falar te fantasme, sé?

- Estávamos sim, dona Samira.

- É, mã! Klala fiu um!

A terrestre fica sem jeito por ter sido jogada ao centro da conversa, especialmente em um assunto tão estranho. E a despeito de sua visão excelente, a mãe de Maria não deu conhecimento do incômodo da menina:

- Sélio? Como viu?

- Não vi nada, dona Samira, só ouvi uma tosse atrás, mas não havia nem alma, só os rasti no chão. E os arbusti balaçaram, mas não havia ninguém a mais que eu sozinha.

- Tu dem zerteza de gue não era bicho? Podelia ser um gato, talfez os rasti estivessem lá a algum dempo... - a adulta sorri sutilmente, no fundo acha a situação muito engraçadinha.

- E os espirri? E as outras coisi, e...

- Vou facer um lanche pala voi, três minuti.

E deixa as duas meninas sozinhas no quarto branco e rosa.

- É sembre assim, sé, KlaraGema?

- Hum?

- Guando uma de Nós Crianças - Maria diz essas palavras com a mesma entonação de uma líder de classe trabalhista - vê alco diverente, os adulti faram que é imaxinação, fábula ou miragem noza, esde tipo de gousa, sé?

Klara concorda humhumzando.

- Tu gonhece a história do gue tisseram à primeila bessoa que viu a esquadra da Constelação checando?

- Não.

- Nem eu, mas devem não der acretitado, com cerdeza... e tu me me deijou culiosa, guero ver o lucar com fantasma, tenio olhi meliores que tu.

- "Olhi meliores que tu" - Klara repete o dito imitando a amiga de forma melosa e engraçada - Tu é uma ratinha exibida.

- Sou ratinha exipida sim, e tu é miquinia loila. =P E aposto minias orelhe com tu gue em zinco minuti nós sailemos de cá pala conferir teu fandasma. ;)



- Maria, como tu sabia que tua mã mandaria nós comprar pãos?

- Ela é minia mã, e sou filia dela. Não havia pãos em gasa e mamã nunga penza que algo mia até brecisar... um dia ela berde as orelias e não dará a falta. É agui?

O dia continuava nublado e a discreta garoa mantinha todas as superfícies com uma demão tímida de micro-gotas de água. Elas fizeram um desvio no caminho da padaria e estavam a sós, sob a proteção de um imenso para-chuvas rosa, em frente ao aglomerado de terra, tijolos, cimento e lajes dos sobrados em construção - fazia algum tempo que a obra fora interrompida - O silêncio era quebrado apenas pelos geradores do drone policial (também chamados de "calotitas") que fazia a ronda indo e voltando na calçada oposta.

Maria foi logo apresentada pela amiga às pegadas e com seus olhões cor de maçã verde procurava aonde elas iam. Klara mantinha-se quieta, também procurando algo fantasmagórico ao redor e fazendo ouvidos atentos à qualquer ruído similar ao que ouvira horas antes.

- Atchim!

Klara dá um pulo.

- Escuso, Krara.

- Maria! ò_ó

- Escuso, esguso ó_ò

Um minuto quietas.... O que estamos fazendo mesmo na garoa, em uma construção assombrada?!

- Gema... melior irmos à pataria, senão já-já minia mã vem me progurar gom cinta. E ficalemos mais gripadas do gue tu esdava ontem.

- Está com medo, Preá?

- Tô sim, Gema, mas da minia mã. Tu dem sorte de ter orelie pequene quando sua mã dezide dar puxões neli.

- E então?

- E endão o que, Gema?

- Vamos para a padaria ou entramos no sobrado para encontrar o fantasma?

- Endrar na... Klá, tu prevere comer pão com mandeiga quentinios em casa ou brefere ficar cripada e de bunda quente por temorarmos demais?

- Tu não é tão medrosa, Má.

- Não é meto, Klá, é juízo.

- Tu também não é ajuizada, Má!!

- Não zou?

- Não, não é.

- Mas de encanei direitinio, não é?

- Tu me cansa, isso sim. Tu é doida.

- Ambas zomos.

- Somos duas enrolone, isso sim. Vamos ou não vamos?

- Não.

= Por que não?? Falam juntas.

= Não foi tu quem falou??

= AAAAAAAAAAHHHHHHHH!!!!..../o/ /o/ gritam e correm.

Quando termina o fôlego, Klara e Maria já estão longe, muito longe dos sobrados, da terceira voz de menina, quase na esquina da rua Viena com a rua Cracóvia. Arfavam ruidosamente, de língua para fora, encostadas em uma alta parede. Maria desvirava o para-chuvas, que virou do avesso na carreira dada.

- Agora... acredita... em mim??

- E eu... tinia duvidado... de tu?

As pernas de Klara doíam laticamente.

- E o que... faremos agora?

- Cinco pãezinhi... tois pacoti de leite... e... doci!!


Voltaram rápido, praticamente no mesmo tempo que gastariam se tivessem ido com calma à padaria e sem fazer o desvio assombrado.

Quietas, lancharam fingindo ser o fato mais interessante do dia. A mãe de Maria estava longe agora e para a alegria das crianças, cantenianos são duros de ouvido (apesar das grandes orelhas), então Klara tinha segurança de que não seriam ouvidas.

- O que nós faremos? Klara disse baixinho, não-sussurrando, para Maria conseguir ouvir.

- O gue *tu* fará, não é? Telá de voldar so-zi-nia para casa, bassar na frende da toca da vantasma...

- 0.0! Klara fica mais branca do que foi fabricada e deixa o sanduíche cair: perdi a fome, Preá...

- Escusoooooo, Gema! - Maria, sincera, faz carinha triste. Não gueria te assusdar!

- Melhor eu ir agora? Antes que escureça...

- Ahh... famos brincar mais um bouco, por favor? Agola sou a professola e tu vai à esgola, para quê... - joga seu urso no colo de Klara - porque du é a mã de Qwé e ele anta mui bagunceiro e linguarudo em zala de aula.

- Tu me chamou para falar do que meu filho anda aprontando?

- Isso, dona Klala, ondem à tarde, guando eu ensinava as conte de difidir...


E as duas brincaram, colocaram o pobre urso de castigo, e curiosa com tanta diversão lá dentro, a noite veio vê-las, encaçapando o Sol para debaixo do horizonte.


- AimeuDeusdocéu, está tarde!

Beijinhos, beijinhos, tudo na velocidade do medo, Klara se arruma, pega suas coisas, se despede da mãe da amiga e puxa Maria pela mão - Tu vem comigo!

A noite ainda não estava em todo seu explendor, dava para ouvir claramente os resmungos em vermelho vindos debaixo do horizonte, com alguns pontinhos brancos chegando pálidos e preguiçosos para testemunhar mais um barraco não-verbal do Astro-Rei. Era assim todas as noites, desde e para sempre, lá no céu...


...Na Terra, Klara subia do mesmo jeito que descera a rua Praga - correndo e pulando as poças de água - e correu mais forte na frente de vocês sabem onde, só parando para arfar lá no alto, junto da passarela pro outro lado. Depois olhou para trás e viu Maria acenando, lá longe, pequenininha, dando "tchau" e em seguida voltando para sua casa...



Agora estava sozinha. Deveria ter mais gente circulando por ali naquela hora, mas não era anormal que às vezes a vaziez regesse ali por longos minutos. Passinhos apertados, Klara chega no portão de casa antes mesmo notar que estava indo para lá.

Uma respiradinha... e lhe veio à mente as histórias de terror que teve coragem de assistir (escondida dos pais e com medo, vendo tudo por entre as frestas das mãos que escondiam seu rosto): aquele era o típico momento em que o monstro atacaria, já ouvia em sua cabeça a musiquinha de suspense, imaginava duas mãos putrefatas chegando por trás, pronta para agarra-la e a levar até a uma tumba escondida... mas nada aconteceu, sua garganta chegou a rascunhar alguma coisa tipo "fantasma, tu está aí?", mas antes de qualquer fonema decidir tomar forma por conta própria, o pavor a fez abrir-fechar o portão e correr para dentro de casa.


- Que houve, filha? Está assustada? - seus pais estão no sofá da sala, assistindo algo no correo.

- V-vi um fantasma hoje, pae.

- Se tu olhar para o correo, verá um monte deli agora. Estamos vendo filme de terror.

- Klara, melhor tu subir e se banhar.

- Sim, mã.

Klara para no caminho, olha para o resto da casa, grande e vazia, e pensa na escuridão do trajeto até lá no alto. Além de tudo, os gritos e a trilha sonora do filme vitaminavam sua imaginação.

- Que foi, filha?

- ...

- Está com medo?

- Uhum.

- É o filme?

- Ã-ã.

- Tu estava vendo filme de terror na casa de Maria, estava?

- Ã-ã.

- Fale direito, filha.

- Estava não, pae.

- Tem certeza?

- Me toma por criança, pae?

Lars Sigl já tinha desistido do filme, estava no fim mas já assistira.

- O que vejo é uma linda moça, mas eu e tua mã sempre pensaremos em tu como nossa criancinha, mesmo daqui a mil anos. Não é, Docinho?

- Uhum, é sim, Doção.

- Vou lá levar Klara para cima, já-já volto.

Da sala seguem para o corredor e, de lá, sobem a escada. A cada degrau com seu pai, ficava para trás um pedacinho do medo da menina.

- O que te fez ter medo, filha?

- Fantasma.

Chegam e sobem a escada para o quarto de Klara. O pai sobe primeiro e em seguida sua cria. Assim que é possível, ele puxa sua filha por debaixo dos braços ("ela costumava ser menor...") e a põe sentada na cama. A olha seriamente, mas de forma amigável.

- Onde tu viu o fantasma, meu docinho de gema de ovo?

Klara pega os cabelos com os dedos e pousa as palmas das mãos nos ombros, junto ao pescoço, deixando os ombros para baixo, meio que se fechando, se protegendo.

- Conhece os sobrados em construção, indo para a casa de Maria?

Ele acena que sim e Lars-filha dispara em contar sua sincera versão dos fatos, floreando e exagerando as cenas. O pai ouve toda a narrativa, entretido mais com a própria cria do que com seu relato, meio pensando na esposa lá em baixo que sem dúvidas reclamaria se eles atrasassem muito para a janta. Quando Klara dá a última pincelada na sua narrativa, olha para o pai com seus olhinhos negros, curiosa pelo que viria em seguida. E ele naturalmente optara pelo ceticismo adulto, mas não queria decepcionar (ou ofender...) a filhinha quase filhona dizendo que não acreditava justo nas partes mais fantasmagóricas e emocionantes.

Refletiu por alguns momentos, e sem ideia melhor, decidiu que dar um abraço forte estava de bom tamanho e o fez de forma desajeitada. Não sabia como agir.

Ela não entendeu lhufas e acha graça.

De repente...

- Klara, quer ouvir uma história?

- Me toma por criança de novo, pae?

- Pelos séculi dos séculi, filha.

A menina resmunga.

- Se tu está com medo de fantasma, por que não posso te contar um conto de fadas?

- Mas não estou mais com medo!

- Então posso te contar a história com as luzes apagade, certo?

- N-não, não!

- Então, "Era uma vez, há muiti ani atrás, uma linda menina que era amada pelos seus paes e que prendia seus longos cabeli com dois laci...



- ... ela chegou lá e viveu feliz para sempre"!

Lars fecha o livro (sim, ele pegou um livro, mas fiquei com preguiça de falar isso antes... =Þ) e olha para a filha adormecida.

- Não sei se é bom ou mau sinal que minha técnica de leitura tenha feito uma criança tão grande dormir tão asinha...


Levanta-se com cuidado para não acordar seu anjinho, a beija na testa e apaga as luzes antes de descer, murmurando um "dorme com Deus"


...


Cinco minutos depois, ele é obrigado a subir, acordar a filha e ouvir reclamações da esposa: Klara não tinha tomado banho ainda ("mas como tu a deixou dormir assim?!") nem jantado. Tem coisas que só mãe faz direito mesmo, não tem jeito.



[continua...]





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